quarta-feira, 20 de junho de 2007

NIETZSCHE

Essas pequenas coisas - alimentação, lugar, clima, recreação, a inteira casuística do amor-próprio são, para além de todos os conceitos, mais importantes do que tudo a que se deu importância até agora. Aqui precisamente é preciso começar a reaprender. Aquilo que até agora a humanidade ponderou seriamente nem sequer são realidades, são meras imaginações ou, dito mais rigorosamente, mentiras provenientes dos piores instintos de naturezas doentes, perniciosas no sentido mais profundo - todos os conceitos "Deus", "alma", "virtude", "pecado", "além", "verdade", "vida eterna"... Mas procurou-se neles a grandeza da natureza humana, sua "divindade"...

Todas as questões da política, da ordem social, da educação foram falsificadas pela base e pelo fundamento por se tomarem os homens mais perniciosos por grandes homens - por aprenderem a desprezar as "pequenas" coisas, quer dizer, as disposições fundamentais da própria vida... E, se me comparo com os homens que até agora foram honrados como os primeiros dos homens a diferença é palpável. Nem sequer tenho esses pretensos çç primeiros" em conta de homens em geral - são para mim vômito da humanidade, aborto de doença e instintos vingativos: são apenas funestos, no fundo incuráveis monstros inumanos, que tomam vingança da vida... Disso quero ser o oposto: minha prerrogativa é ter a suprema finura para todos os signos de instintos sadios.

Falta em mim qualquer traço doentio; mesmo nos tempos de mais grave doença, nunca me tornei doentio; é em vão que se procura em meu ser por um traço de fanatismo. Em nenhum instante de minha vida se poderá apontar um gesto pretensioso ou patético. O pathos das atitudes não pertence à grandeza; quem em geral necessita de atitudes é falso... Cuidado com os homens pitorescos!

A vida se tornou para mim leve, levíssima, quando reclamava de mim o mais pesado. Quem me viu nos setenta dias desse outono, em que eu, sem interrupção, só fiz coisas de primeira ordem, que nenhum homem pode repetir - ou imitar, com uma responsabilidade por todos os milênios depois de mim, não terá percebido nenhum traço de tensão, mas antes um transbordante frescor e serenidade. Nunca comi com mais gosto, nunca dormi melhor.

Não conheço nenhum outro modo de tratar com grandes tarefas, a não ser o jogo: isso, como sinal de grandeza, é um pressuposto essencial. A mínima coação, a expressão sombria, algum tom duro na garganta, tudo isso são objeções contra um homem, quanto mais contra sua obra!... Não é permitido ter nervos... Também sofrer com a solidão é uma objeção - sempre sofri somente com a "multidão"... Absurdamente cedo, aos sete anos, eu já sabia que nunca me alcançaria uma palavra humana; alguém já me viu atribulado com isso?

Ainda hoje tenho a mesma afabilidade para com todos, e até mesmo trato com toda distinção os mais inferiores; em tudo isso não há um grão de petulância, de desprezo secreto. Quem eu desprezo adivinha que é desprezado por mim: revolto por minha mera existência tudo que tem sangue ruim no corpo... Minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo - todo o idealismo é mendacidade diante do necessário -, mas amá-lo...

(Nietzsche, Friedrich. "Por que sou tão esperto", § 10 Ecce Homo. ln: Nietzsche - Obras
incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril, 1978, p. 373-4)


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